Doze domingos a partir pinhões para festas do Espírito Santo
São, em média, 12 tardes de domingo, preenchidas a partir os pinhões, limpá-los e construir as “enfiadas” que vão enfeitar o andor do Espírito Santo. A procissão efectua-se no dia 11 de Maio, mas os preparativos começaram há muito. Uma tradição que se mantém viva na localidade do Espírito Santo, concelho de SoureNão se conhecem as origens, mas a população do Espírito Santo mantém-se, ano após anos, fiel à tradição de enfeitar o andor com “enfiadas” de pinhões. Os números assustam os “leigos”, mas não causam qualquer temor aos mordomos responsáveis pela festa, nem aos muitos, pequenos e graúdos, que se juntam para ajudar. Este foi o terceiro domingo que homens e mulheres se juntaram, uns a partir pinhões, outros a limpá-los e outros a preparar as “enfiadas”. Um trabalho delicado e moroso, mas feito com empenho e num ambiente de convívio salutar. De acordo com Manuel Miranda, da comissão de festas, «o trabalho começa por volta das 13h30 e prolonga-se até às 18h00, sendo que a última meia hora é dedicada à bucha». Há quem toque e cante e o trabalho “corre sobre rodas”, que é como quem diz, partem-se quilos e quilos de pinhão e cons-troem-se, em média, 100 “enfiadas” de metro por tarde, até se atingirem as 900 necessárias, de acordo com Manuel Miranda.“Exigências de grande escala” que não intimidam os mordomos, nem todos quantos se juntam para desenvolver, ano após ano, este trabalho, mantendo viva uma tradição cujos registos fotográficos mais longínquos apontam para o início do século passado. As razões desconhecem-se, mas a fé no Espírito Santo justifica todos os esforços, da mesma forma que a existência de pinhais mansos pode ajudar a compreender a opção pelas “enfiadas” de pinhões que decoram o andor.Mas se todos os domingos a população se junta, o trabalho preparatório – e é muito – começou há muitos meses. Manuel Miranda “guia-nos” neste périplo, que começa, conta, «logo no dia a seguir à procissão». O ramo é entregue aos novos mordomos, responsáveis pela organização da próxima festa e a eles compete «levantar o ramo da capela e encaminhá--lo para casa de um dos mordomos». No dia a seguir, terça-feira, «o ramo é desmanchado, os pinhões retirados da estrutura de arame, divididos e distribuídos pela população». De acordo com o mordomo, a capelaria tem cerca de 280 fogos e cada casa é contemplada com uma ou duas “enfiadas” de pinhões e «uma fatia de bolo de azeite». Com este acto de partilha e comunhão começa o trabalho da nova comissão, cujo calendário é longo, trabalhoso e prolongado no tempo.Com efeito, se agora se estão a partir os pinhões, foi necessário, antes, recolher as pinhas, bem como a caruma. Estas agulhas de pinheiro são recolhidas em Agosto e segue-se um interregno, até que o calendário impõe a colheita das pinhas. Uma operação delicada, conta o mordomo, que «envolve alguns riscos» e impõe, por parte da comissão, um seguro aos “trepadores”.
Três toneladas de pinhas
O “tiro de partida” é dado no dia de Todos-os-Santos, 1 de Novembro. Nos pinhais mais próximos apanham-se algumas pinhas, mas «já não há pinhais mansos como noutros tempos». Por isso, aos arredores daquela localidade da freguesia de Soure junta-se um périplo entre Condeixa e Penela, uma zona onde, adianta Manuel Miranda, «existem muitos pinheiros». “Armados com escadas” e uma agilidade de fazer inveja, os grupos põem-se a caminho, com os necessários tractores e respectivos atrelados. Há, conta este responsável, “peritos” em subir aos pinheiros, trepar aos ramos e colher as pinhas. Mas também se socorrem de escadas para facilitar a tarefa. «Este ano um jovem sofreu um queda, mas não foi nada de grave», refere, sublinhando a importância de garantir a cobertura do seguro, não vá “o diabo tecê-las”. Domingo é o dia “sagrado” para o trabalho e ao longo de dois, três ou quatro domingos a comitiva seguiu rumo ao pinhal, de onde trouxe cerca de três toneladas de pinhas. Estas foram, depois, guardadas num barracão, protegidas da humidade, de forma a poderem secar. «Ficam ali até ao Natal», esclarece o nosso interlocutor, adiantando que no dia de Reis se dá início a uma nova “vaga”. Ou seja, pega-se na caruma e estende-se, colocando sobre ela uma camada de pinhas, secundada por nova camada de caruma, e assim sucessivamente. Depois deita-se fogo e o «calor abre as pinhas, permitindo que sejam retirados os pinhões». Mas, e porque as pinhas não ficam completamente abertas, é necessário, ainda, levá-las ao “cepo”, onde apanham uma pancada seca, com um maço de madeira que as ajuda a abrir.Num trabalho verdadeiramente organizado, as pinhas abertas são levadas para um monte, «onde 30 a 40 pessoas estão a “cascabulhar”, ou seja, a retirar os pinhões das pinhas, «um trabalho manual, muito custoso», refere o mordomo. É, depois, necessário separar os pinhões do “cascabulho” (restos de pinhas), operação conseguida através da “tarara”, equipamento usado para limpar cereais ou azeitona e que serve às mil maravilhas para os pinhões. O pinhão, ainda com casca, fica então armazenado e este ano a comissão conseguiu reunir 60 alqueires, conta Manuel Miranda, esclarecendo que tal significa 600 litros de pinhão. «Foi uma boa safra», confessa, satisfeito.
Preparar 1.200 “enfiadas”
A tarefa mais recente foi o ciclo de partir o pinhão, que começou dia 3 de Fevereiro. A comunidade junta-se num espaço preparado para o efeito. Numa zona, conta, ficam 15 homens, em média, de cada lado e, “armados” cada um com o seu martelo, partem pinhões ao longo de horas sucessivas, entre cantigas e o som de algum gaiteiro amigo. Em paralelo, outras 30 pessoas, mas desta feita mulheres, separam a casca do pinhão e, depois, retiram a película castanha que o envolve. Um trabalho minucioso, que deixa o pinhão “limpinho” e permite que outro grupo dê início à construção das “enfiadas”. Agulha e linha são instrumentos necessários e uma boa visão também ajuda, alerta o responsável, uma vez que é necessário espetar os pinhões com a agulha, evitando que partam. A “enfiadura”, com cerca de 1,20 metros, é rematada com um nó em cada ponta, ficando, em média com um metro de comprimento.Em média, em cada tarde de domingo, segundo Manuel Miranda, são feitas 100 “enfiadas”, de um total de 900 absolutamente necessárias para decorar o andor. Cada uma leva cerca de 300 pinhões, «dependendo do tamanho» e são confeccionadas 1.200, «pelo seguro», uma vez que algumas se estragam quando se monta a estrutura de arame. Há “enfiadas” para enrolar aos arames, outras que ficam estendidas, e cada uma tem a sua técnica especial.A operação de partir pinhão e construir as “enfiadas” envolve 12 domingos, o que significa, de acordo com Manuel Miranda, que «até ao dia 20 de Abril teremos o pinhão todo partido». «Sobram pouco mais de 15 dias», adianta, tempo que não é muito para o que falta fazer. Ou seja, montar a estrutura, que começa a ser preparada na Semana Santa. «Há várias pessoas que o sabem fazer, mas a tradição manda que seja uma única, sem qualquer ajuda, que começa e acaba o trabalho sozinha, desde a montagem da estrutura de arame do ramo, até à sua decoração com as “enfiadas” de pinhões». O ramo, de acordo com “as contas” do mordomo, deverá ficar concluído no dia 9 de Maio, praticamente na véspera da procissão, que se realiza no dia 11. Ficam apenas a faltar os bolos de azeite, nove, em forma de ferradura, que são cozidos em forno de lenha e colocados no centro do andor. Fé e tradição lado a lado na localidade do Espírito Santo, em Soure.
.
In Diário de Coimbra, Gil Alves (Jornal Preto No Branco)